Num dia frio de Novembro de 1095, um Papa francês, Urbano II, estava nos campos de Clermont, França, para se dirigir a uma assembleia de milhares de pessoas. Príncipes, cavaleiros, bispos, padres e monges ouviram a sua voz retumbante chamá-los para uma guerra santa contra os turcos que ocupavam Jerusalém. Naqueles dias antes da televisão, o Papa teve que fornecer a sua própria descrição gráfica das torturas e atrocidades cometidas pelos infiéis contra os cristãos na Terra Santa. Quem deve vingar estes erros, quem deve recuperar os lugares santos, se não os franceses, a flor do cavalheirismo cristão? Avivem a memória de Carlos Magno e dos seus sucessores ‘que destruíram os reinos dos pagãos e plantaram a igreja santa nas suas terras’. Eles devem recuperar o Santo Sepulcro das mãos das nações impuras. Uma vez que lutar uns contra os outros era vocação e divertimento para os cavaleiros que o ouviam, o Papa desafiou-os a redireccionar a sua matança. ‘Se precisais de sangue, banhai-vos no sangue dos infiéis… Soldados do Inferno, tornai-vos soldados do Deus vivo!’
As cruzadas prejudicaram a missão da Igreja em terras islâmicas durante um milénio, pois eles entregaram a fé cristã a uma jihad cristã, uma guerra santa sob o estandarte de Cristo.
Isto traiu a missão da igreja no mundo; o poder armado não pode fazer avançar o reino do Senhor Jesus, Ele que fez Pedro embainhar a sua espada. Jesus disse a Pilatos que ele era de facto Rei (Jo 18:37), e não lhe falta poder real. O Deus-homem é Senhor de todos: a sua salvação traz o julgamento assim como a redenção (Sl. 96:13; Jo. 5:21-23); o seu governo no céu governa agora toda a criação, e ele abaterá todo o mal para sempre (1 Cor. 15:24-28; Heb. 1:4; Col. 2:15; Fil. 2:9-11). No entanto Jesus disse a Pilatos que o seu reino não é deste mundo, senão os seus servos lutariam para o defender e para o trazer (Jo. 18:36). O que é que Jesus quer dizer?
O reino de graça e glória de Cristo
O reino de Cristo é um reino de graça e de glória. A cruz é o caminho da sua graça salvadora. Os seus discípulos não compreenderam isto; para eles a salvação messiânica significava a libertação política dos opressores Romanos. Na prisão de Herodes, João Baptista ficou consternado por Jesus não ter usado o seu poder para trazer o julgamento (Lc. 7:18-19). Ele enviou os seus discípulos para perguntar a Jesus: “És tu aquele que havia de vir, ou devemos esperar outra pessoa? (Lc. 7:20). Jesus enviou os discípulos de João de volta para ele como testemunhas dos milagres messiânicos que cumpriram a profecia (Is 35:5-6; 61:1). Ele acrescentou uma palavra para João: ‘bem-aventurado é aquele que em mim se não escandalizar.’ (Lc. 7:23).
Jesus estava de facto a dizer a João: ‘Confia em mim para trazer o meu reino à minha maneira’. Se ele tivesse trazido o julgamento, Jesus não poderia ter poupado nem Herodes nem nenhum pecador, nem mesmo o duvidoso João. Jesus veio em carne e osso não para trazer o julgamento, mas para o carregar; não para matar com a espada dos seus lábios, mas para receber os pregos nas suas mãos e a lança no seu lado. De nenhuma outra forma poderia vir o seu reino e a vontade de Deus ser feita na terra como no céu. O reino estabelecido pela graça deve ser avançado pela graça, e depois consumado na glória. Não pelo poder político, mas pelo poder do Espírito, é o evangelho levado às nações.
Tanto a glória como a graça definem o reino de Cristo. Para ele a glória já começou, e pelo seu Espírito a partir do seu trono nós já começamos a prová-la (Rom. 14:17). A glória que aparecerá quando ele aparecer é uma glória na qual já nos regozijamos apesar das nossas provações (1 Pedro 1:7-8; 4:14; 2 Cor. 3:18). Não através de uma utopia política imposta pela espada, Cristo julgará e renovará a terra, mas pelo seu regresso em glória. A nossa salvação está mais próxima do que quando primeiro acreditámos, porque a vinda de Cristo está mais próxima. Enquanto esperamos pelo reino que está para vir nós temos o penhor dessa glória, a presença do Espírito .
A igreja como a comunidade do reino de Cristo na terra é uma ordem teopolítica. Enquanto todas as coisas estão sob o governo de Cristo, é a sua governação salvadora que constitui o seu reino (Col. 1:13). A igreja é a Polis (cidade) celestial na terra, a nova humanidade cujos corações são circuncidados pelo seu Espírito. A sua amplitude alcança todos os povos; a sua profundidade renova o até o coração (Je. 32:39; Eze. 11:19). A “etnicidade” da igreja como o novo Israel de Deus sublinha a sua realidade comunitária, que não é diminuída mas aumentada porque é espiritual. Nós não temos cidade permanente aqui; a igreja não pode ser identificada com os reinos deste mundo (Heb. 13:14). Mas nós temos uma cidade com fundamentos, cujo construtor e criador é Deus; a igreja exerce a cidadania celestial na comunhão dos santos (Heb. 11:10, 16; 12:28; Fil. 3:20). A comunidade existe na terra, mas é governada pelas chaves do reino celestial, com sanções espirituais, não físicas (Mt. 16:19; Apoc. 3:7).
Como uma companhia de peregrinos celestiais, a igreja não empunha a espada (Jo. 18:11, 36). Não precisa lutar, pois o reino de Deus não precisa de armas humanas; não pode lutar, pois (como os Cruzados aprenderam) a espada não pode trazer a salvação do reino. As nossas armas são espirituais, e mais potentes por essa razão (2 Cor. 10:4-5; Ef. 6:12-18; 1 Cor. 4:8). Nem pode a igreja apegar-se a concepções mundanas de honra e poder.
Jacques Ellul refere-se a um incidente que é por vezes aduzido como um exemplo principal do absurdo da especulação teológica: enquanto os turcos rodeavam Constantinopla, os bizantinos estavam ocupados a debater a doutrina da Santíssima Trindade. Mas, pergunta Ellul, “O que, em última análise, é realmente importante para toda a humanidade – que Jesus seja realmente o Cristo? ou que os turcos tenham derrotado os bizantinos no início do século XV? A espada não pode decidir as derradeiras questões.
Infelizmente, a igreja tem muitas vezes procurado a vantagem da espada, entregando-a ao Estado para a empunhar em seu nome. Esta foi a prática na longa história da Inquisição, começando em 1163 quando o Papa Alexandre III exortou os bispos a procurarem hereges e os príncipes seculares para os punir. Na Genebra de Calvino, a igreja condenou Servetus, mas foram os magistrados da cidade que o queimaram. As Cruzadas foram pregadas pela igreja, mas foram os exércitos dos príncipes europeus que executaram os combates.